A pandemia e seu grande mal: a festa de Carnaval (?)

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Por: Isabela Nascimento*

É fevereiro. Em um passado recente, esse era também o mês que abria alas para o novo ano. Somente após a alegria do carnaval é que o brasileiro dava início à labuta cotidiana.

Embora as origens da festa também se liguem ao Cristianismo, suas manifestações e atualizações ao longo dos anos fizeram com que o carnaval passasse a ser entendido de modo bastante pejorativo, carnal, profano e imoral. Para muitos, essa folia histórica é um grande mal.

Entretanto, o movimento resistiu e consagrou-se nacionalmente como a expressão maior em termos de cultura e diversidade. Um levante popular para cantar as marchinhas e a Bahia de todos os santos, encantos e axés. As vozes contrárias tornaram-se minoritárias, meras reclamações vindas da soberba de alguns e do moralismo de outros.

A pandemia da covid-19, porém, foi propícia para a amplificação das vozes do contra. Tudo começou com a teoria conspiratória a respeito de um Jesus sendo derrotado pelo Diabo, encenação que fazia parte da comissão de frente de uma escola de samba. Blasfêmia, horror, abominação. Toda a equipe da escola passou a ser atacada e ameaçada.

Até hoje, em 2022, o post que viralizou no começo da pandemia ainda ressurge com os dizeres: “Você pode duvidar, mas depois disso nada foi como antes”, ou seja, para muitos, estamos em pandemia porque uma encenação artística usou figuras bíblicas.

A tal encenação, considerada o motivo para o castigo pandêmico, tratava-se, na verdade, da apresentação da escola Gaviões da Fiel. Segundo o coreógrafo, ela tinha por objetivo expressar justamente o contrário, mostrando que apesar das provações, a fé deveria ser maior. Quanta ironia, não? Acabamos por perceber o quanto nosso país ainda é feito de uma fé leviana e pouco entendida das razões e dos desígnios de Deus.

Cabe mencionar que tal teoria faz menos sentido ainda quando constatamos que o desfile não ocorreu em 2020, mas sim em 2019, ano em que tudo correu muito bem e sem o vírus em circulação.

Atualmente, além de ser o grande causador da pandemia, o carnaval é também tripudiado em nome de uma suposta contenção das contaminações. Em hipótese alguma discordo das medidas que ainda se tomam como precaução, a começar pelo cancelamento ou adiamento das festas de carnaval. Mas, ao navegar pelas redes, é nítido como a força dessas manifestações contra o carnaval provém muito mais do elitismo e do preconceito e menos da preocupação sanitária.

As postagens aproveitam para condenar a festa, para pedir que nunca mais exista, para desejar que seja abolida de vez, para culpá-la por todos os contágios do vírus. A quem interessa que uma festa popular converta-se na grande vilã enquanto tantas figuras de poder jogaram a favor do vírus e tantos eventos nocivos já aconteceram sem tamanha indignação?

Em nossa cidade, a festa de carnaval demarca um espaço democrático: nos dias de festa, os moradores da periferia avançam pelas ruas centrais da cidade, seja para comercializar seus trabalhos, seja para aproveitar a folia. Em meio a uma sociedade excludente, o carnaval é lugar de todos, algo tão emblemático quanto a ocupação das praias brasileiras: ricos e pobres praticando as mesmas atividades, presentes nos mesmos locais, embalados pelo mesmo som: seja o barulho do mar, seja o trio elétrico a tocar. Obviamente que tais coexistências não acontecem sem gerar incômodo na elite, sabemos bem.

Com este texto não trago respostas, apenas indagações, reflexões. Carnaval é cultura, é festa popular, é expressão artística de brasilidade e diversidade. Carnaval só não é responsável por supostos castigos divinos, e, cabe lembrar: atitudes ruins ou condenáveis dizem respeito aos seres humanos e não a eventos específicos.

Que as armadilhas do regresso não nos levem a odiar nossas expressões culturais.

*Isabela Nascimento é Professora de Redação e Espanhol, Bacharela em Letras e Mestra em Estudos Literários.

**Os artigos publicados com assinatura não manifestam a opinião de O Defensor. A publicação corresponde ao propósito de estimular o debate dos problemas nacionais e mundiais e de refletir as distintas tenências do pensamento contemporâneo.

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